Um Crepitar de Nós
Carta aberta ao Regresso

Foi naquele momento em que ambos nos apercebemos: era a última acendalha e não pegou. As lágrimas chegam-nos ao beijo antes de secarem. O silenciar da lareira faz lembrar-me a faúlha que se desprende, cada vez mais escassa, desvanece e me inunda o olhar quando te afastas, quase não te alcanço.
Pensamos ter-se apagado para sempre.
Sinto um arrepio. O frio invade cada recanto meu. Qualquer tricô denso será insuficiente para aquecer um corpo nu, completamente despido e poroso à dor que sinto ao ver-te partir. Tento, porém não sossego.
Trancada na confusão do quarto que arrendo cá dentro, ainda consigo ouvir a tua voz em monólogos, compreender o que conta o teu silêncio, inalar o cheiro a lar, que já não acalma e deixou de o ser.
[…]
Ouço o ranger, mas das escadas desta vez… Sinto-te aproximar, o meu coração a pulsar, o calor a erguer. De fundo, soa uma Sorte Grande. O crepitar da lareira faz lembrar-me a lenha que queima, inflama o peito e me incendeia o olhar quando chegas perto, quase me tocas.
Ainda à distância, já sinto o corpo perder-se na mesma música da chama que a tua alma cantou naquele dia. Muda a batida, acelera o compasso, não posso resistir à dança. Ofereces-me um copo de vinho quente, brindamos. O líquido derrama do nosso jeito único atrapalhado, quero-te cada vez mais perto.
Os corpos movimentam-se numa valsa perfeita. Tu comigo: Liberdade.
É bom ver-te regressar. É bom ter-te cá. Agora sinto que eu finalmente cheguei a casa.